Na perspectiva de Maria Lúcia de Arruda Aranha
1. As diversas abordagens do real
A autora começa sua análise baseando-se na diversidade das “maneiras pelas quais o homem entra em contato com o mundo”, destacando-se as “as abordagens mítica, religiosa, artística, científica, filosófica e do senso comum” que não apresentam-se de forma “excludentes, podendo coexistir em um mesmo indivíduo” (p.104).
Avançando em sua abordagem, Aranha afirma que “entre os povos tribais o mito é uma estrutura dominante (…) baseia-se na crença dos deuses e exige a execução de rituais que permeiam as atividades técnicas: os instrumentos são mágicos; a origem das atividades é divina; as manifestações artísticas, bem como as relações entre os homens (…) são acompanhadas de rituais baseados em crenças míticas (…) tudo é mito e tudo se faz por magia” (p.104).
Quando o “mito deixa de ser uma forma abrangente de compreensão do real, (…), o conhecimento se seculariza, isto é, deixa de ser predominantemente religioso” (p.104). Esta estrutura de conhecimento empírico é chamada de senso comum e origina-se na herança recebida por um grupo social, desenvolvida a partir de experiências fecundas e continuamente transformadas, passando de senso comum a bom senso.
Ora, podemos afirmar que o senso comum “é fragmentado, difuso e , num primeiro momento, não questionado, pois é um conhecimento ametódico e assistemático” (p.105). Vale ressaltar que nas sociedades autoritárias o senso comum assume um caráter ideológico que corrobora os interesses dominantes.
No próximo tópico, a autora procurará situar as bases a partir das quais o pensamento filosófico irá se erigir.
2. O conceito de filosofia
Origem da filosofia “A filosofia nascente rejeitava as impressões míticas que (…) aceitavam a interferência de agentes divinos na natureza” e “surge como um pensamento reflexivo que busca a definição rigorosa dos conceitos, a coerência interna do discurso a fim de possibilitar o debate e a discussão” (p.105).
A partir disto, apoiando-se na idéia de admiração proposta por Platão, a autora avança em sua análise afirmando que “a admiração é a condição da qual deriva a capacidade de problematizar” (p.105). E, pelo fato do filósofo grego refletir sobre todos os campos da indagação humana, ele pode ser considerado de certa forma um cientista.Filosofia e ciência A separação entre filosofia e ciência acontece a partir da revolução científica ocorrida no séc. XVII. Este processo avança até o séc. XIX, quando vão “se constituindo os métodos das chamadas ciências particulares (…) delimitando campos específicos da pesquisa” (p.105).
Neste ponto a autora se pergunta pelo “que resta à filosofia ao longo tempo com o aparecimento das ciências particulares” e logo em seguida afirma que “a filosofia continua tratando dos mesmos objetos abordados pela ciência” sem “jamais deixar de considerar o objeto do ponto de vista da totalidade”. A filosofia assume uma posição de estar “presente como reflexão e crítica a respeito dos fundamentos desses conhecimentos e desse agir” (p.106).
Infere ainda que “as conclusões da ciência têm um caráter de juízos de realidade” e a “filosofia faz juízos de valor, não aborda a realidade apenas como ela é, mas como deveria ser”. E, por isto mesmo, “ao criticar a realidade em que vive, o filósofo projeta um futuro em que uma outra realidade será construída” (p.106).
O processo do filosofar Ao abordar este tópico, Aranha parte do princípio de que a abordagem da filosofia é necessariamente histórica e por isso, “não precisamos ser filósofos profissionais para nos ocuparmos com questões filosóficos” (p.106). A atitude de reflexão traz alguns desdobramentos importantes, pois podemos dizer que “refletir é retomar o próprio pensamento, pensar o já pensado, voltar para si mesmo e colocar em questão o que já conhecemos” (p.106).
Fazendo um paralelo com o filósofo da vida, diz a autora que a reflexão do filósofo especialista é muito diferente, “na medida em que conhece a tradição dos pensadores, debate com os teóricos do seu tempo e cria conceitos, desenvolvendo um método e uma maneira rigorosa e sistemática de pensar” (p.107).
Apoiando-se na contribuição dada por Demerval Saviani que diz que a “reflexão é propriamente filosófica quando é radical, rigorosa e de conjunto” (p.107), Aranha enuncia cada um destes aspectos presentes na definição de Saviani.
“A filosofia é radical enquanto explicita os fundamentos do pensar e do agir”, é “rigorosa porque dispõe de um método claramente explicitado que permite proceder com rigor, garantindo a coerência e o exercício da crítica” através de uma “linguagem rigorosa que permite definir claramente os conceitos, evitando as ambigüidades” e “de conjunto porque é globalizante porque examina os problemas sob a perspectiva do todo”. Disto resulta “sua função de interdisciplinaridade que permite estabelecer o elo entre as diversas formas do saber e do agir humanos” (p.107).
3. Importância da filosofia
Inserida num contexto pragmático presente no mundo contemporâneo a filosofia não encontra muitos adeptos. Contudo, “a filosofia é necessária (…) e quer resgatar assim a unidade que se encontra no sentido humano do pensar e do agir” garantindo o “distanciamento para a avaliação dos fundamentos dos atos humanos e dos fins a que eles se destinam” (p.107).
Rompendo com o não questionamento a filosofia impede a estagnação e assume a “função de desvelar as ideologias, as formas pelas quais é mantida a dominação” tendo como vocação “desvelar o que está encoberto pelo costume, pelo convencional, pelo poder. Por isso a atitude da filosofia exige coragem. A filosofia não é um exercício puramente intelectual. Descobrir a verdade é aceitar o desafio da mudança, é ter coragem de enfrentar as formas estagnadas do poder que mantêm o status quo” (p.107-8)
4. Filosofia da educação
O processo de transmissão da cultura de um povo se faz mediante a educação, “seja de maneira informal ou por meio de instituições como a escola”. Por esta razão a “teoria, contudo, é necessária para que se supere o espontaneismo, permitindo que a ação educacional se torne mais coerente e eficaz”. Lembra a autora que a teoria “não se desliga da realidade, mas nasce do contexto social, econômico e político em que vai atuar. Quanto mais rigorosa for, mais intencional será a prática” (p.108).
A postura do filósofo deve ser então a de “acompanhar reflexiva e criticamente a ação pedagógica de modo a promover a passagem ‘de uma educação assistemática (guiada pelo senso comum) para uma educação sistematizada (alçada ao nível da consciência filosófica)'[2]” (p.108)
Segundo esta perspectiva “o filósofo indaga a respeito do homem que se quer formar, quais os valores emergentes que se contrapõem a outros, já decadentes, e quais os pressupostos do conhecimento subjacentes aos métodos e procedimentos utilizados”. Neste momento podemos destacar os aspectos antropológicos, axiológicos e epistemológicos aí presentes. “Qual a concepção de homem que orienta a ação pedagógica”, é uma questão cujo exame evita uma educação abstrata da “criança em si, de homem em si”(p.108).
Estes aspectos não esgotam a “função de interdisciplinaridade pela qual estabelece a ligação entre as diversas ciências e técnicas que auxiliam as pedagogias”.
Finalmente, e tendo sempre presente o “questionamento sobre o que é a educação, a filosofia não permite que a pedagogia se torne dogmática, nem que a educação se transforme em adestramento ou qualquer outro tipo de pseudo-educação”. Isto implica que o formação do pedagogo tenha um caráter de “politização e fundamentação filosófica de sua atividade” (p.108).
Considerações finais
A abordagem proposta pela autora apresenta algumas características muito interessantes e bem apropriadas para o nosso contexto. Gostaria de destacar algumas delas:
- O modelo de filosofia proposto por ela mostra-se bem estruturado e construído sobre pilares extremamente eficazes na abordagem do real
- O equacionamento entre teoria e prática pedagógica implicando em mudanças de posturas, conteúdos e formas para a educação;
- A abordagem do fenômeno mito foi feita com muita propriedade, valorizando seus aspectos presentes no cotidiano sem contudo conferir um status maior que o devido;
- O senso comum foi bem colocado como um ponto de partida válido a partir do qual a reflexão filosófica pode avançar, superando o primeiro e construindo uma nova esfera de reflexão;
- A preocupação constante de atribuir um papel à filosofia enquanto agente de transformação do real, comprometida com rupturas e capaz de realizar proposições para o futuro;
Por fim, considero muito oportuno ressaltar o caráter de historicidade e concretude conferida à filosofia em sua análise, ciente da sua trajetória e comprometida com o processo de construir novos horizontes. Ter a coragem de afirmar que a prática filosófica é necessariamente uma prática política e por isso sua ação tem implicações igualmente políticas, já denota um grande compromisso com um projeto de transformação maior para o qual todos são chamados. Especialmente nós que intencionalmente optamos por construir o processo de educação neste país, estabelecendo as condições sobre as quais o conhecimento será produzido, o conteúdo deste mesmo conhecimento, sua validade e profundidade, além do compromisso com os desdobramentos daí decorrentes.
Educar não pode estar circunscrito aos limites do repetir, mas deve ser um movimento sistemático, capaz de sempre criar condições para o surgimento do realmente novo.
[1]Todas as citações presentes neste estudo referem-se à obra ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Filosofia da educação. 2Ed. São Paulo: Moderna, 1996. 234 p. [2]Demerval Saviani, Educação: do senso comum à consciência filosófica, p.54